O silêncio herdado: quando o pertencimento exige renúncia à própria voz

Nota de confidencialidade e anonimização.

Este texto é fruto da reconstrução narrativa de vivências reais, cuidadosamente modificadas, editadas e anonimizadas com rigor.

Nomes, profissões, localidades e vínculos foram alterados ou omitidos para preservar integralmente a identidade das pessoas envolvidas. Qualquer semelhança com histórias conhecidas é, portanto, coincidência ou resultado da universalidade de certas experiências humanas. O objetivo aqui é clínico-reflexivo, e não descritivo.

Contexto familiar e vivências precoces

Há histórias que não se contam — não por falta de palavras, mas por excesso de implicações. Esta é uma delas. Uma história onde os afetos vinham com custo, o amor se confundia com vigilância, e a fidelidade exigia silêncio.

Desde cedo, ele aprendeu a escutar o que não era dito. Cresceu num lar marcado por ausências ruidosas e presenças ameaçadoras. Era o filho mais novo, mas não o herdeiro do nome.

Esse havia sido dado ao irmão mais velho, num gesto que selava a continuidade de um legado que, na prática, nunca se realizou. Já ele parecia carregar outro destino: reparar, compensar, calar.

O peso simbólico de uma família em ruína silenciosa recaía sobre seus ombros com a sutileza dos pactos não verbalizados. A avó materna, ao se casar com um homem tido como “inferior” aos olhos da cidade, teria arrastado consigo a reputação da família.

Quando o silêncio herdado limita escolhas e relações, o olhar de um psiquiatra pode ajudar a reconstruir segurança e pertencimento.

Foi a partir desse marco que se instaurou um clima de retração e vigilância: tudo deveria ser corrigido, elevado, mantido sob controle. Seu pai, o mais novo dos três filhos, permaneceu com a mãe viúva e a irmã mais velha, enquanto os outros buscavam autonomia.

Cultivava um amor devocional pelo pai falecido e trazia no peito um orgulho ferido, ora convertido em silêncio, ora em violência. Foi descrito como alguém que não admitia críticas, especialmente à sua linhagem.

A mãe, por sua vez, vivia entre o ressentimento e a conformidade. Teve dificuldades para engravidar, foi alvo de piadas no trabalho, sentia-se pressionada a cumprir um papel materno antes de se sentir pronta.

Quando narrava esse período, suas palavras vinham com tonalidades de mágoa — como se a maternidade tivesse sido algo exigido, não escolhido.

Ele cresceu num ambiente de tensões densas. As brigas eram frequentes, o pai bebia, a mãe batia.

O afeto, quando vinha, era ambíguo: às vezes, envolvia gestos que o confundiam, toques que cruzavam limites — e tudo isso era envolto por discursos de amor, honra e sacrifício. Aquilo que deveria acolher, feria. Aquilo que deveria proteger, invadia.

Tentava, sem sucesso, compreender os códigos da casa. Sabia apenas que precisava sair dali — mas também sabia que, para isso, teria que cumprir a missão que lhe fora dada: ser alguém que honrasse o nome da família, mesmo sem tê-lo herdado formalmente.

Estudou muito, tornou-se um excelente aluno, buscou em sua profissão (que não foi a de sua escolha) uma forma de validar sua existência. Tudo isso à custa de si.

Mais tarde, encontrou um relacionamento estável — ou pelo menos seguro.

Uma relação longa, atravessada por dependência, necessidade de controle e medo de abandono. Reconhece, hoje, os jogos de poder que se instauram ali.

Reconhece, também, o quanto ainda se organiza a partir do medo de ser rejeitado por dizer o que pensa, por se posicionar, por desagradar.

Essa recusa ao pertencimento forçado, somada à autocensura, tornou-se um traço identitário. Há nele um olhar crítico e uma urgência de nomear o que está encoberto — o que, paradoxalmente, o isola.

Ele não se sente à vontade em grupos que exigem adequação acrítica. Afastou-se de comunidades nas quais precisava se calar para permanecer. Carrega a dor de ter tido que esconder sua própria complexidade para não ser excluído.

Observações clínicas e caminhos possíveis

Do ponto de vista clínico, o que se nota é a organização de um self moldado pela sobrevivência. Como em muitas histórias marcadas pelo desamor sutil — esse que se apresenta na forma de idealização, invasão ou expectativa de reparação — a subjetividade se estrutura entre dois polos: o da hiperadaptação e o da crítica implacável.

A clínica, nesse caso, não é o lugar da correção. É o lugar da restituição simbólica. Da escuta paciente de quem não pôde se ouvir.

Do reconhecimento de que certas estratégias de defesa foram atos de inteligência emocional em contextos hostis.

E, sobretudo, da construção progressiva de uma voz própria que não precise mais se calar para sobreviver — nem gritar para ser percebida.

Abordagens como a Terapia do Esquema ajudam a compreender as lealdades invisíveis que se repetem, enquanto a DBT oferece ferramentas concretas para diferenciar emoção legítima de impulsividade aprendida.

Mas talvez o mais essencial, como ensinava Winnicott, seja a experiência de ser sustentado em um espaço suficientemente seguro para existir sem ter que agradar.

Porque, no fim, pertencer não deveria custar a si mesmo. E o maior gesto de dignidade, às vezes, é dar fim ao ciclo de lealdades que nos obrigaram a desaparecer para sermos aceitos.

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Sobre o autor:

Dr. Fábio Fonseca

Dr. Fábio Martins Fonseca é psiquiatra e psicoterapeuta com mais de 20 anos de experiência. Possui formação pela Unicamp e aperfeiçoamento internacional em Terapia Cognitivo‑Comportamental no Beck Institute (Filadélfia). É membro certificado da Academy of Cognitive Therapy, com especialização em DBT pelo Linehan Institute (Seattle) e formação em Entrevista Motivacional (UNIFESP). Atua com cuidado humanizado e baseado em evidências.

Vamos caminhar juntos em direção a uma saúde mental mais equilibrada e satisfatória.

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