O que chamamos de transtorno? E quem decide isso?
1. Nossas lentes moldam nossa escuta
Uma jovem de 23 anos relata tristeza intensa, exaustão, insônia e uma sensação de vazio que dura semanas. Veio à consulta porque seu gerente disse que ela “precisava melhorar o humor no trabalho”. Foi diagnosticada com depressão.
Outra mulher, da mesma idade, também chora com frequência, sente-se sobrecarregada e perdeu o apetite. Mas vive em um território periférico, cuida dos irmãos sozinha, trabalha em dois turnos e nunca cogitou procurar ajuda — afinal, “todo mundo passa por isso”.
Ambas sofrem. Mas apenas uma é vista como “paciente”. A outra é chamada de forte, ou de “acostumada”.
Quem escuta essa dor? Quem tem direito ao cuidado?
2. Biologia importa — mas não é tudo
Sim, há evidências robustas de que o sofrimento psíquico tem base cerebral.
Alterações em neurotransmissores, circuitos neurais e marcadores genéticos estão envolvidos em diversos transtornos: da esquizofrenia à depressão resistente.
Mas nenhum cérebro sofre no vazio.
Uma mulher com histórico de violência pode apresentar os mesmos sintomas de um quadro depressivo maior — e ao mesmo tempo, estar respondendo a uma história crônica de medo, privação e isolamento.
Ambos os aspectos são reais: o biológico e o vivencial.
O erro é achar que precisamos escolher entre um ou outro.
3. Cada cultura ensina uma forma de sentir
Um adolescente do interior diz que não “sofre de ansiedade”, mas que “o coração dispara e ele precisa sair correndo”.
Um homem de origem africana conta que sente uma força ruim que o impede de dormir e se alimentar, e que o curandeiro da família identificou como um desequilíbrio ancestral.
Se escutássemos apenas com base nos critérios do DSM, talvez ambos fossem diagnosticados com transtornos de ansiedade. Mas o risco seria enquadrar o sintoma e perder o sujeito.
4. Nem tudo o que é cultural deve ser mantido
Uma paciente relata crises de pânico recorrentes, mas hesita em procurar ajuda porque, segundo seu pai, “isso é frescura de quem não tem fé”.
Outro paciente, imigrante, sente culpa por buscar tratamento psiquiátrico, pois em sua cultura isso seria sinal de fraqueza.
Respeitar a cultura não é perpetuar silêncio ou sofrimento.
Há normas culturais que protegem. Outras, que adoecem.
A clínica precisa sustentar esse discernimento ético: acolher sem conivência, escutar sem legitimar tudo.
5. Diagnóstico: nomear sem aprisionar
Dar nome ao sofrimento pode trazer alívio.
Mas, se mal utilizado, o diagnóstico também pode congelar uma história viva.
Um paciente com TDAH pode se reconhecer e se tratar melhor.
Outro pode usar esse nome como sentença, como se não pudesse mais mudar.
A boa prática diagnóstica é a que ajuda o paciente a entender seu funcionamento sem reduzir sua identidade a um código CID.
6. A escuta que integra: biologia, história, cultura
Como clínico, escuto com base no que estudei — mas também sou atravessado pelas minhas vivências, valores e limites.
O desafio é manter-se em estado de presença: com ciência, sim. Mas também com curiosidade. Com técnica, sim. Mas sem deixar que ela ocupe todo o espaço.
Porque entre o corpo que sente e o mundo que interpreta, há uma travessia.
E é nela que a clínica acontece.
7. O que a prática me ensinou
Nem toda dor precisa ser medicada.
Mas há dores que só melhoram com tratamento biológico.
Nem todo sofrimento precisa de nome.
Mas alguns nomes são a primeira chance de cuidado que alguém recebe.
A escuta clínica madura é a que não se apaixona por nenhuma teoria a ponto de esquecer quem está diante de nós.
8. Para refletir (e talvez compartilhar)
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O que você chama de “normal” — foi herdado de onde?
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Como sua história influencia o que você tolera ou não no outro?
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Qual tipo de sofrimento você reconhece com facilidade? Qual você tende a deslegitimar?
A saúde mental exige menos pressa para nomear — e mais coragem para sustentar a complexidade do humano.
Sobre o autor:
Dr. Fábio Fonseca
Psiquiatria e Psicoterapia
Com mais de 20 anos de experiência como psiquiatra e psicoterapeuta, o Dr. Fábio é conhecido por sua abordagem humanizada e pelo compromisso em oferecer cuidados de saúde mental baseados nas mais recentes evidências científicas.
Vamos caminhar juntos em direção a uma saúde mental mais equilibrada e satisfatória.
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