Coisas que aprendi no consultório (e na vida) — nº 4

A exaustão de sustentar uma imagem: o que ainda é seu, no meio disso tudo?

Não é raro, na clínica, encontrar histórias de exaustão que não se originam de um evento único, mas de um processo lento, quase imperceptível, de erosão da vitalidade. Não há rompimento. Nem diagnóstico abrupto. Apenas uma sucessão de pequenos silenciamentos, concessões invisíveis, adaptações que, aos poucos, vão afastando o sujeito de si.

Às vezes, a cena se repete: alguém se senta à minha frente e diz, com estranheza — “Eu me perdi de mim mesmo, e não sei quando isso aconteceu.”

Talvez o pano de fundo seja um modo de vida que exige não apenas produtividade, mas também uma espécie de visibilidade emocional e narrativa coerente. Uma época em que até sentimentos parecem precisar de legenda, conquistas de compartilhamento, dores de superação estética.

A lógica atravessa corpos e subjetividades, confundindo identidade com desempenho, valor com engajamento, existência com presença digital. O viver, por vezes, vai sendo substituído pela necessidade de parecer estar vivendo — e a experiência real se esvazia, silenciosamente.

Entre a exigência de ser alguém e o medo de não ser nada

A cobrança não se limita à produção. Ela se estende à coerência emocional, à felicidade estética, à inteligência afetiva constante. O adoecimento, muitas vezes, não nasce do excesso de tarefas, mas do esforço contínuo de sustentar uma imagem de plenitude, engajamento, otimismo, flexibilidade, resolução.

Há um cansaço que nasce do esforço diário de manter um personagem — até mesmo na intimidade.

No consultório, esse sofrimento se manifesta em sintomas que, à primeira vista, poderiam ser enquadrados como ansiedade, burnout, depressão, insônia, sensação de vazio, crises de pânico ou mesmo sintomas somáticos como dores e fadiga crônica. Mas, no fundo, trata-se da dor de viver sob uma narrativa que não acolhe falhas, pausas, dúvidas, imperfeições.

É preciso reconhecer que essa exaustão não se limita ao universo digital. Condições de trabalho instáveis, jornadas extenuantes, expectativas familiares rígidas e desigualdades estruturais também atravessam essas trajetórias, tornando o desgaste ainda mais multifacetado.

Se estivéssemos em sessão, talvez eu perguntasse:

  • Há quanto tempo você sente que precisa sustentar uma imagem?

  • O que, em você, já não suporta mais representar algo que não sente?

  • Em que momentos você se percebe inteiro, mesmo sem produzir nada?

Perguntas não para corrigir, mas para escutar: o desejo, o limite, o que ainda pulsa.

Sobreviver não é se ajustar ao absurdo — é lembrar que ainda existe um “eu” possível

O atendimento, por isso, não pode se limitar a devolver a funcionalidade, como se produzir e seguir adiante fosse suficiente. Às vezes, o início do cuidado está em recuperar o direito de perguntar: para quem tento ser tudo isso? O que de mim ficou pelo caminho?

O cuidado não se esgota na regulação de neurotransmissores. Ele precisa sustentar um espaço onde o paciente possa escutar o que ainda resiste, deseja, intui que viver não se resume a performar.

Quando a clínica também se desafia: cuidado que não se reduz à performance

A psiquiatria, como qualquer campo do cuidado, corre o risco de absorver, sem crítica, a lógica do marketing emocional — onde sofrimento precisa de enredo, recuperação de metas, escuta de ferramenta e vínculo de protocolo.

Por vezes, o sofrimento é traduzido rapidamente em diagnóstico e cronograma terapêutico, o que pode empobrecer a escuta e o vínculo. Reconhecer os avanços da farmacologia e da objetividade clínica é fundamental, mas há dores que não cabem em fórmulas, histórias que precisam ser narradas antes de serem medicadas.

O compromisso ético é duplo: tratar, sim, quando necessário — mas também sustentar espaços de cuidado que respeitem a complexidade da experiência humana, legitimem a contradição, acolham os tempos internos.

Mesmo que o texto parta do consultório, ele se dirige a qualquer um que, em algum momento, sentiu o peso de representar algo que não condiz mais com sua verdade.

E então, o que ainda sustenta a alma em meio a tanto ruído?

Não há resposta única.

Talvez seja encontrar espaços onde não é preciso performar. Onde ser real valha mais do que parecer bem.

Talvez seja resgatar valores próprios, que resistam às narrativas vendáveis.

Talvez seja reaprender a diferenciar desejo de exigência, cansaço de fracasso, presença de visibilidade.

Ou, quem sabe, fazer acordos mais gentis com quem se é, antes de tentar agradar o mundo.

Se algo desse texto reverberou em você, talvez seja apenas sinal de que ainda existe, aí dentro, uma verdade que resiste — e que deseja ser reencontrada, mesmo quando o mundo insiste em afastá-la.

Este texto não quer ensinar, nem performar. Quer apenas sustentar presença — como quem segura um espaço entre a escuta e o cuidado. É extensão da consulta, não seu substituto.

dr fabio fonseca psiquiatra campinas perfil profissional

Sobre o autor:

Dr. Fábio Fonseca
Psiquiatria e Psicoterapia

Com mais de 20 anos de experiência como psiquiatra e psicoterapeuta, o Dr. Fábio é conhecido por sua abordagem humanizada e pelo compromisso em oferecer cuidados de saúde mental baseados nas mais recentes evidências científicas.

Vamos caminhar juntos em direção a uma saúde mental mais equilibrada e satisfatória.

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