Entre o crachá e o coração: quando o trabalho promete mais do que pode cumprir

Há tempos o trabalho deixou de ser apenas uma fonte de sustento. Para muitos, é no ambiente profissional que se busca reconhecimento, pertencimento, propósito. Não é raro ouvir que “é ali que me sinto alguém”.

A análise de Esther Perel sobre essa mudança ganha força num tempo em que tantas outras formas de laço — família, religião, comunidade — se encontram fragilizadas. O trabalho parece prometer o que antes se esperava do afeto.

Mas será que cabe ao trabalho carregar tantas promessas?

E o que acontece quando ele não cumpre?

Para quem vive num país como o Brasil, onde segurança, estabilidade e oportunidades são desigualmente distribuídas, o trabalho pode ser uma tábua de salvação.

Uma empresa com benefícios, um emprego com carteira assinada, um ambiente que oferece algum acolhimento, tudo isso pode parecer, e às vezes de fato é, uma forma de dignidade. Reduzir isso a alienação ou ilusão seria injusto.

Há quem encontre no trabalho aquilo que faltou em casa: previsibilidade, respeito e até mesmo cuidado.

Ainda assim, quando o trabalho passa a ser o único espaço possível de afirmação, as consequências emocionais podem ser duras. Empresas não são feitas para conter angústias existenciais.

E mesmo quando têm programas de bem-estar, escuta e apoio, ainda operam com metas, pressões e hierarquias. Às vezes, pedem que você seja inteiro, mas só até a página dois. Autenticidade demais incomoda. Vulnerabilidade, dependendo da posição que você ocupa, pode custar caro.

Em consultório o qual atendo como psiquiatra, escuto com frequência histórias de esgotamento que não nascem do excesso de trabalho, mas do excesso de expectativa e propósito. A conta não fecha quando se exige do crachá o que antes era cultivado no vínculo.

E isso não significa romantizar a família, o bairro, a igreja ou qualquer outro espaço de outrora. Significa apenas reconhecer que há funções simbólicas que nenhuma corporação conseguirá assumir por completo.

Ao mesmo tempo, é preciso nuance. Nem todo desejo de sentido no trabalho é expressão de carência. Há quem se reconheça no que faz, e isso é legítimo.

Há quem queira melhorar o mundo por meio da profissão, e isso é necessário. A questão talvez não esteja em buscar sentido, mas em depositar tudo nesse lugar.

É possível desejar realização sem sacrificar a saúde. É possível construir vínculos no trabalho sem esquecer dos vínculos fora dele. É possível se comprometer com o que se faz sem fazer disso sua única fonte de identidade.

No fim, a pergunta não é se o trabalho pode ou não nos oferecer sentido. A pergunta é: quando o trabalho falha, e ele vai falhar, onde mais você se ancora?

Seja qual for a resposta, que ela não dependa só da produtividade. Porque aquilo que nos sustenta, no fundo, não é o crachá. É a possibilidade de encontrar, fora das metas e dos cargos, lugares onde sejamos vistos, mesmo quando não estamos entregando nada.

 

dr fabio fonseca psiquiatra campinas perfil profissional

Sobre o autor:

Dr. Fábio Fonseca

Dr. Fábio Martins Fonseca é psiquiatra e psicoterapeuta com mais de 20 anos de experiência. Possui formação pela Unicamp e aperfeiçoamento internacional em Terapia Cognitivo‑Comportamental no Beck Institute (Filadélfia). É membro certificado da Academy of Cognitive Therapy, com especialização em DBT pelo Linehan Institute (Seattle) e formação em Entrevista Motivacional (UNIFESP). Atua com cuidado humanizado e baseado em evidências.

Vamos caminhar juntos em direção a uma saúde mental mais equilibrada e satisfatória.

Compartilhar post: