Quando o amor não foi suficiente: o que aprendemos com o desamor — e o que fazemos com isso

Nem todo trauma vem do excesso. Às vezes, o que fere é justamente aquilo que faltou. O gesto que não veio, a escuta que não se deu, a presença que se ausentou sem explicação — e seguiu ausente mesmo quando voltou.

Chamar isso de “desamor” pode parecer vago demais para a objetividade clínica. Mas é justamente por não ter sido nomeado que tanta gente passou a vida inteira tentando compreendê-lo em silêncio — e tentando, de algum modo, merecer o que não recebeu.

O desamor, nesse sentido, não é uma ausência genérica de afeto. É um padrão relacional internalizado, vivido como uma experiência repetida de não reconhecimento. Aquilo que, como propõe Winnicott, faz o sujeito duvidar de sua própria realidade emocional.

O que, como sugerem os modelos da Terapia do Esquema, gera modos de funcionamento adaptativos à custa da espontaneidade. E que, como ensina a DBT, precisa ser acolhido com validação antes que se possa ensinar qualquer nova habilidade.

Porque quando o amor falha, o sujeito aprende — ainda que precocemente demais — a proteger-se. Aprende a não esperar, a se adaptar, a vigiar, a agradar, a fugir. Não por fraqueza, mas por fidelidade ao que um dia foi necessário.

Mas o mais surpreendente é que, mesmo assim, o desejo de amar sobrevive. Como um grão que resiste no solo seco, esse desejo insiste — ainda que se confunda com vigilância, exigência, medo, performance.

Roteiros diferentes, feridas parecidas

O que a escuta clínica mostra, com alguma frequência, é que as mesmas crenças de desamor podem produzir comportamentos radicalmente diferentes. E, por isso mesmo, tantas vezes passam despercebidas por olhares desatentos.

Uma paciente que nunca reclama e sempre cuida de todos pode ser elogiada por sua “maturidade”. Um homem que evita envolvimentos afetivos pode ser visto como “autossuficiente”.

Uma jovem que alterna entre intensidade e silêncio pode ser lida como “instável”. Mas em todos esses casos, há algo em comum: o medo de não ser amado tal como é.

Não é só sofrimento: é uma forma de verdade. E como alerta Gabor Maté, em muitos pacientes “a dor mais profunda não é a dor do trauma, mas a dor de não termos sido permitidos sentir o que sentimos no trauma.”

Esse é o ponto: o que vemos como sintoma é, muitas vezes, uma biografia comprimida. Uma tentativa de manter vínculos, mesmo às custas de si.

A vergonha como moldura

Em quase todos os roteiros de desamor, há também uma camada de vergonha. A criança que não foi acolhida conclui que o problema está nela. E começa a viver com a convicção de que algo em sua forma de sentir é demais — ou de menos.

Essa vergonha gera esforço. O esforço de calar o que sente. Ou de tentar ser quem o outro precisa. Ou de não depender de ninguém. O esforço de não incomodar. De ser fácil de amar.

Mas o amor verdadeiro não se organiza em torno da facilidade. Ele pede presença, coragem e, sobretudo, espaço para a verdade emocional — essa que, tantas vezes, foi preterida em nome da conveniência relacional.

Romper o ciclo: o trabalho possível

No atendimento, não se trata de desmontar crenças por meio de argumentos. Trata-se de reconhecer a fidelidade com que o paciente tentou sobreviver. De dar nome às estratégias que, um dia, fizeram sentido. E de oferecer, aos poucos, outras formas de relação — inclusive conosco, clínicos.

A partir da DBT e da prática baseada em evidências, sabemos que não basta validar. É preciso ensinar habilidades. Mas também sabemos que, sem validação profunda, nenhuma técnica floresce. Por isso, o trabalho é duplo: acolher a dor e ao mesmo tempo desafiar gentilmente seus efeitos.

Oferecer modelos novos de comunicação, de regulação emocional, de escolha consciente. Estimular a diferenciação, como propõe Bowen: o sujeito não precisa cortar vínculos — precisa deixar de se apagar neles.

E aos poucos, algo muda. Porque quando o sujeito começa a experimentar pequenas respostas diferentes, pode reescrever a pergunta. Pode parar de perguntar “o que falta em mim?” e começar a perguntar “o que eu posso escolher construir agora?”.

Buscar a escuta e a orientação de um psiquiatra pode ajudar a compreender os impactos emocionais do desamor e a reconstruir a autoestima, favorecendo um processo de cura que respeite seu tempo e suas necessidades.


Para terminar: verdade não é exposição

Falar de verdade emocional não é fazer apologia da transparência bruta. Em contextos de desamor, há risco — físico, relacional, emocional. Por isso, assertividade e autorrespeito não são sinônimos de “dizer tudo que se pensa”, mas de escolher o que merece ser dito, a quem, e com que intenção.

A comunicação — quando feita com integridade e cuidado — pode transformar o ambiente. Mas para isso, precisa nascer do reconhecimento da própria dignidade.

Nem sempre é seguro falar. Mas quando é possível, e quando é justo, dizer a verdade pode ser um ato de reconstrução.

Não para apagar o que faltou — mas para deixar de faltar a si mesmo.

dr fabio fonseca psiquiatra campinas perfil profissional

Sobre o autor:

Dr. Fábio Fonseca

Dr. Fábio Martins Fonseca é psiquiatra e psicoterapeuta com mais de 20 anos de experiência. Possui formação pela Unicamp e aperfeiçoamento internacional em Terapia Cognitivo‑Comportamental no Beck Institute (Filadélfia). É membro certificado da Academy of Cognitive Therapy, com especialização em DBT pelo Linehan Institute (Seattle) e formação em Entrevista Motivacional (UNIFESP). Atua com cuidado humanizado e baseado em evidências.

Vamos caminhar juntos em direção a uma saúde mental mais equilibrada e satisfatória.

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