Entre vícios e bússolas: Como sustentar uma clínica eficiente, cuidadosa e ética
Nenhuma clínica começa do zero. Mesmo quando nos propomos a fazer diferente, já estamos atravessados por tudo o que vimos, escutamos e suportamos no consultório de psiquiatria, na formação, na vida. Não há ponto de partida neutro.
E por mais bem-intencionados que sejamos, nossa prática sempre carrega ruídos: automatismos, vícios de linguagem, zonas cegas.
Ainda assim, é possível construir uma clínica que alie efetividade técnica, cuidado humano e ética relacional, desde que tenhamos disposição de olhar para aquilo que também nos atravessa como profissionais: nossas contradições, defesas, hábitos mal examinados. Esse é um convite a esse olhar.
A ética começa em casa
Antes de ser cuidado com o outro, a ética é um modo de cuidar de si mesmo — não no sentido autocentrado, mas como responsabilidade sobre a própria presença clínica.
É a disposição de se observar sem se punir. De perceber quando algo se automatizou, quando o rigor virou rigidez, quando a escuta virou performance.
Às vezes, é sutil.
- Aceleramos a condução de uma consulta, e chamamos isso de foco.
- Evitamos um tema delicado, e chamamos isso de respeito à autonomia.
- Sentimos irritação, e escondemos atrás de uma formulação técnica.
Reconhecer esses movimentos não nos diminui. Nos responsabiliza.
Bússola clínica ≠ mapa perfeito
Não se trata de eliminar incertezas ou de se tornar um clínico irrepreensível.
Trata-se de ter uma bússola ética que aponte para onde voltar quando algo começa a sair do eixo.
Essa bússola costuma se expressar por perguntas silenciosas, como:
-
Isso que estou propondo serve ao paciente — ou à minha ansiedade de entregar um “resultado”?
-
Essa escuta está aberta — ou está apenas confirmando o que eu já esperava ouvir?
-
Essa decisão está a serviço do cuidado — ou da minha necessidade de parecer competente?
Perguntas como essas não visam à paralisia. Visam à inteireza.
Ajudam a preservar o que há de mais valioso na clínica: o vínculo, a honestidade, o pensamento vivo.
Eficiência sem pressa, ética sem purismo
É possível ser eficiente sem se apressar.
É possível ser ético sem virar prisioneiro de um ideal moral irrealizável.
Eficiência clínica não é quantidade de intervenções, mas qualidade na escuta e clareza nos objetivos.
Ética clínica não é pureza comportamental, mas compromisso com o impacto da nossa presença no outro.
Quando esses dois elementos se equilibram, a prática ganha corpo: respeita o tempo do paciente, mas não se acomoda; age com precisão, mas sem perder a sensibilidade; sustenta limites, mas não se fecha ao novo.
A dúvida como ferramenta — não como fuga
Toda clínica viva carrega dúvidas.
Mas há dois tipos:
-
A dúvida operante, que nos ajuda a afinar decisões, ajustar escutas, sustentar perguntas que fazem crescer.
-
E a dúvida protetora, que impede o gesto, enfraquece a autoridade clínica e camufla um medo de errar que nunca foi digerido.
O trabalho está em cultivar a primeira — sem deixar a segunda assumir o controle.
Coerência que respira
Uma clínica coerente não é a que repete o mesmo padrão o tempo todo, mas a que consegue ser fiel a princípios mesmo quando precisa mudar de estratégia.
É saber que coerência não é rigidez.
É poder voltar atrás sem perder autoridade.
É poder se rever — sem se desmontar.
Esse tipo de coerência inspira confiança no paciente, porque é coerente com ele, não apenas consigo.
Para quem ainda deseja praticar com inteireza
Construir uma clínica eficiente, cuidadosa e ética não é um ponto de chegada — é um processo vivo.
É uma travessia feita de decisões pequenas, ajustes silenciosos e retomadas internas que nem sempre aparecem no prontuário, mas sustentam tudo o que importa.
A verdadeira reputação clínica se constrói quando conseguimos sustentar essa bússola ética mesmo nos dias em que não somos nosso melhor.
E isso não se faz com técnicas impecáveis, mas com discernimento, compromisso e honestidade com o que nos move.
Em tempos de pressa, performance e fórmulas, talvez o mais revolucionário ainda seja isso:
seguir praticando com presença.
Com discernimento.
Com humanidade.
Sobre o autor:
Dr. Fábio Fonseca
Dr. Fábio Martins Fonseca é psiquiatra e psicoterapeuta com mais de 20 anos de experiência. Possui formação pela Unicamp e aperfeiçoamento internacional em Terapia Cognitivo‑Comportamental no Beck Institute (Filadélfia). É membro certificado da Academy of Cognitive Therapy, com especialização em DBT pelo Linehan Institute (Seattle) e formação em Entrevista Motivacional (UNIFESP). Atua com cuidado humanizado e baseado em evidências.
Vamos caminhar juntos em direção a uma saúde mental mais equilibrada e satisfatória.
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