Efeitos colaterais que quase ninguém pergunta

Entorpecimento afetivo, perda de libido, apatia — e o silêncio clínico em torno disso.

O que acontece quando o sofrimento cessa, mas a vitalidade também?

Como psiquiatra, no consultório, é comum ouvir relatos como:

“Melhorei da ansiedade, mas parece que tudo ficou meio sem cor.”
“Não tenho mais vontade de chorar — nem de rir.”
“Parei de sentir raiva, mas também perdi o desejo.”

São frases que muitas vezes surgem no final da consulta, ditas com receio, como se fossem confissões incômodas. Não raro, são recebidas com silêncio ou com uma resposta técnica rápida: “isso é melhor do que estar em crise, não é?”.

Mas será que isso basta?

Importante dizer: nem todo mundo sente esses efeitos, e para muita gente a medicação é um divisor de águas positivo. Mas justamente por isso, vale escutar com cuidado o que cada um experimenta — inclusive o que não aparece nos exames.

O alívio que vem com um custo invisível

Muitos psicofármacos, especialmente antidepressivos, podem causar efeitos colaterais que não aparecem nos exames: perda da libido, embotamento emocional, fadiga, ganho de peso, dificuldade de concentração, sensação de artificialidade.

Esses efeitos nem sempre são mencionados nos manuais clínicos. E, quando são, vêm com um asterisco: “ocorre em poucos casos”. Mas, na prática, muita gente sente.

Vale lembrar: nem todas as pessoas sentem esses efeitos, e nem todos os sintomas têm a mesma intensidade. O impacto da medicação é subjetivo — e precisa ser avaliado caso a caso.

A pergunta que fica é: por que não falamos sobre isso com mais naturalidade?

O silêncio da clínica

Existe uma espécie de pacto silencioso — às vezes involuntário — em torno desses efeitos. Parte por medo de que o paciente desista do tratamento. Parte por uma lógica biomédica que valoriza o controle dos sintomas acima da qualidade da experiência.

Fatores culturais, sociais e de gênero também influenciam: falar de desejo, prazer ou sensibilidade pode ser mais difícil para algumas pessoas — especialmente quando essas dimensões já foram historicamente silenciadas.

Mas sentir menos não é sinônimo de estar melhor. E calar esses efeitos pode gerar culpa, confusão ou até abandono precoce do tratamento.

Escutar sem julgar, ajustar sem desistir

Nem sempre a saída é interromper a medicação. Às vezes, pequenas mudanças de dose, troca de classe ou associação com outras abordagens já ajudam a recuperar vitalidade sem perder estabilidade.

Mas isso exige escuta. E confiança para dizer: “tem algo que melhorou, mas algo se perdeu”.

Falar dos efeitos não é ser contra o tratamento — é fazer com que ele seja mais ajustado à pessoa real que o vive.

Como abordar isso na prática?

  • Se você é paciente: anote o que mudou desde o início do tratamento — sensações, desejos, emoções. Leve esses registros para a consulta. Falar disso não é ingratidão: é cuidado com você.
  • Se você é profissional: pergunte ativamente sobre libido, prazer, espontaneidade. Às vezes, o paciente não sabe se “pode” falar sobre isso.
  • Para ambos: ajustar o tratamento é possível. E não significa que ele falhou, mas que está sendo feito com mais precisão e respeito.

⚠️ Nunca interrompa ou mude a medicação por conta própria. Toda decisão deve ser feita junto com o profissional que te acompanha.

Entre o controle e o viver

Todo tratamento envolve ganhos e perdas. O que está em jogo não é só o alívio dos sintomas, mas o modo como alguém consegue estar no mundo com mais inteireza.

Falar sobre efeitos colaterais é também uma forma de respeito. Porque não se trata apenas de “estar funcional” — mas de voltar a sentir-se vivo.

Para refletir (ou levar para a consulta):

  • Você sente que algo mudou na sua sensibilidade desde o início da medicação?
  • O que melhorou — e o que parece ter se anestesiado?
  • Como seria um tratamento que te aliviasse, mas também te preservasse?

Em resumo:

  • Alguns efeitos colaterais dos remédios não aparecem nos exames, mas afetam o sentir.
  • Nem todo mundo sente, mas se acontecer, vale conversar.
  • Ajustes são possíveis — com cuidado, tempo e escuta.

O mais importante: não decidir nada sozinho. Fale com seu psiquiatra.

Quer se informar mais?

  • Procure por autores como Joanna Moncrieff, que discute os efeitos subjetivos da medicalização.
  • Alguns grupos de apoio entre pacientes ajudam a compartilhar experiências com honestidade.
  • Uma segunda opinião também pode ser parte do cuidado — não um sinal de desconfiança.

📍 Medicação não precisa ser tabu. Mas os efeitos subjetivos também merecem voz.

dr fabio fonseca psiquiatra campinas perfil profissional

Sobre o autor:

Dr. Fábio Fonseca

Dr. Fábio Martins Fonseca é psiquiatra e psicoterapeuta com mais de 20 anos de experiência. Possui formação pela Unicamp e aperfeiçoamento internacional em Terapia Cognitivo‑Comportamental no Beck Institute (Filadélfia). É membro certificado da Academy of Cognitive Therapy, com especialização em DBT pelo Linehan Institute (Seattle) e formação em Entrevista Motivacional (UNIFESP). Atua com cuidado humanizado e baseado em evidências.

Vamos caminhar juntos em direção a uma saúde mental mais equilibrada e satisfatória.

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