Quando a droga vira desempenho: a outra recaída que ninguém vê
A recuperação de uma dependência química costuma ser entendida como o ato de parar de usar. O marco da abstinência — muitas vezes celebrado como um divisor de águas — é, sem dúvida, um ponto de inflexão.
Mas, na prática clínica, é comum perceber que a substância deixa o corpo antes que a dor encontre um lugar seguro para existir. E, quando isso acontece, algo curioso ocorre: a compulsão se transforma, mas não desaparece.
A substituição da droga por produtividade
Muitos pacientes em abstinência inicial se engajam em rotinas intensas de trabalho, exercício físico, planejamento ou espiritualidade.
À primeira vista, esse movimento pode parecer sinal de recuperação — e, de fato, muitas vezes é parte do processo de reorganização. No entanto, quando a produtividade se torna compulsiva, o que se observa é a migração do sintoma para um lugar socialmente aceito, mas emocionalmente evasivo.
Esse fenômeno, já bem descrito na literatura, é conhecido como “cross-addiction” (adição cruzada) ou substituição comportamental. Para Edward Khantzian (1985, 1997), o uso de substâncias pode ser compreendido como uma tentativa de autocuidado emocional — ou seja, uma forma disfuncional de lidar com emoções intoleráveis.
Quando a droga é retirada, o indivíduo frequentemente recorre a outros comportamentos que proporcionem uma sensação de controle ou alívio.
Goodman (2008) amplia essa perspectiva ao propor que adições comportamentais — como o workaholismo, a compulsão por treino ou mesmo o consumo exagerado de redes sociais — compartilham mecanismos neurobiológicos e psíquicos semelhantes aos das adições químicas, especialmente no que tange ao sistema de recompensa e à regulação dopaminérgica.
O cérebro continua buscando alívio
A neurociência confirma: Nora Volkow e George Koob (2015) descreveram extensamente como a adição não está apenas no objeto, mas no circuito — e esse circuito não se desativa com a abstinência.
A busca por reforço, gratificação e alívio de tensão pode se reestruturar em outras formas de compulsividade. A pessoa deixa a droga, mas permanece no mesmo ciclo de expectativa, descarga e anestesia — agora disfarçado de produtividade.
Quando o desempenho passa a funcionar como nova forma de regulação emocional, surgem consequências sutis e perigosas. O sujeito que aparenta “estar bem” — rendendo, entregando, performando — pode, por dentro, estar em risco: esgotado, isolado, sem vínculo emocional real, com medo de parar e encarar o silêncio.
O que acontece quando tudo silencia?
A clínica mostra que muitas recaídas não começam no uso, mas no vazio deixado pelo excesso de funcionamento. Sábados sem compromissos, feriados silenciosos, espaços em que não há exigência — esses momentos costumam revelar o que ainda não foi tratado.
É quando ouvimos frases como:
“Eu parei… mas continuo sozinho.”
“Eu me reorganizei… mas ninguém me espera.”
“Eu me cuidei… mas ainda não sei me relacionar.”
E, de fato, muitas dessas pessoas nunca aprenderam a construir vínculos verdadeiros. Cresceram em ambientes onde o afeto era condicionado, onde confiar era arriscado e onde mostrar fragilidade resultava em humilhação ou abandono.
Marsha Linehan (1993), ao descrever o funcionamento de pacientes com desregulação emocional crônica, aponta que grande parte deles vem de contextos invalidantes — e que a dificuldade em se regular está profundamente ligada à ausência de modelos seguros de vínculo.
Conversar com um psiquiatra pode ajudar a compreender os impactos emocionais e físicos do uso de substâncias para desempenho e a buscar caminhos mais saudáveis.
A abstinência como luto e como recomeço
Parar de usar é só o começo. Depois vem o luto:
Luto pela ilusão de controle, pelas amizades perdidas, pela identidade que girava em torno do uso, pelo tempo que não volta.
Segundo Lisa Najavits (2002), na abordagem Seeking Safety, é justamente nessa fase que o tratamento mais precisa oferecer segurança, vínculo e alternativas afetivas reais — não apenas metas de funcionamento. A cura não vem da contenção do comportamento, mas da possibilidade de construir relações significativas onde antes havia só sobrevivência.
Essa transição é dolorosa, mas possível. Exige tempo, vínculo, escuta e apoio ético. Envolve aprender a pedir ajuda sem vergonha, a tolerar ambivalência sem se desorganizar, a construir presença afetiva sem medo de ser descartado.
O retorno ao sentido
Viktor Frankl (1946) e Irvin Yalom (1980) já haviam mostrado, cada um a seu modo, que sem sentido não há saúde mental sustentável. E que o trabalho terapêutico profundo exige mais do que interrupção de sintomas: exige reconstrução de pertencimento, identidade e valor pessoal — não como ideal, mas como experiência sentida.
Miller & Rollnick (2013), na Entrevista Motivacional, reforçam que mudanças verdadeiras surgem de uma relação baseada em aceitação, parceria e evocação — não em prescrição. O paciente só avança quando se sente respeitado em sua ambivalência e escutado em sua dor.
Conclusão
A verdadeira recuperação não é a ausência da recaída.
É a presença de vínculos que sustentam.
É a capacidade de descansar sem culpa, de se relacionar sem se perder, de construir uma vida que não precise ser anestesiada.
É quando o sujeito finalmente percebe que não precisa mais render para merecer ficar.
Essa reconstrução é possível. E já está acontecendo, todos os dias, nas histórias silenciosas de quem desistiu da fuga e se permitiu aprender, devagar, a ficar inteiro — mesmo imperfeito.
Referências
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Frankl, V. E. (1946). Em busca de sentido. Vozes.
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Goodman, A. (2008). Neurobiology of addiction: An integrative review. Biochemical Pharmacology, 75(1), 266–322.
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Khantzian, E. J. (1985). The self-medication hypothesis of addictive disorders: Focus on heroin and cocaine dependence. American Journal of Psychiatry, 142(11), 1259–1264.
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Khantzian, E. J. (1997). The self-medication hypothesis of substance use disorders: A reconsideration and recent applications. Harvard Review of Psychiatry, 4(5), 231–244.
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Linehan, M. M. (1993). Cognitive-Behavioral Treatment of Borderline Personality Disorder. Guilford Press.
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Miller, W. R., & Rollnick, S. (2013). Motivational Interviewing: Helping People Change (3rd ed.). Guilford Press.
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Najavits, L. M. (2002). Seeking Safety: A Treatment Manual for PTSD and Substance Abuse. Guilford Press.
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Volkow, N. D., & Koob, G. F. (2015). Brain disease model of addiction: why is it so controversial?. The Lancet Psychiatry, 2(8), 677–679.
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Yalom, I. D. (1980). Existential Psychotherapy. Basic Books.
Sobre o autor:
Dr. Fábio Fonseca
Dr. Fábio Martins Fonseca é psiquiatra e psicoterapeuta com mais de 20 anos de experiência. Possui formação pela Unicamp e aperfeiçoamento internacional em Terapia Cognitivo‑Comportamental no Beck Institute (Filadélfia). É membro certificado da Academy of Cognitive Therapy, com especialização em DBT pelo Linehan Institute (Seattle) e formação em Entrevista Motivacional (UNIFESP). Atua com cuidado humanizado e baseado em evidências.
Vamos caminhar juntos em direção a uma saúde mental mais equilibrada e satisfatória.
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