Quando o sofrimento persiste: o que a neuroprogressão pode (ou não) nos ensinar?
“Eu não sou mais como antes.”
Muitos pacientes dizem isso — às vezes com tristeza, às vezes com susto.
Não é só o humor que muda. É o corpo que cansa, a mente que desacelera, a memória que falha, o afeto que esfria.
Mas será que todo sofrimento emocional leva a esse tipo de mudança?
Nem sempre. Mas em alguns casos, sim. E a psiquiatria tem tentado compreender melhor esse processo.
O que é neuroprogressão?
A neuroprogressão é um conceito usado para explicar como alguns transtornos mentais, especialmente os mais graves e persistentes, podem causar alterações progressivas no funcionamento do cérebro.
Estamos falando, sobretudo, de quadros como a depressão resistente, o transtorno bipolar tipo I e a esquizofrenia — especialmente quando não tratados de forma precoce ou contínua.
Essas alterações incluem inflamação crônica, estresse oxidativo, diminuição da plasticidade cerebral e perda da conectividade funcional entre regiões do cérebro.
Mas é importante dizer: nem todo sofrimento leva a isso.
Quadros leves ou episódicos costumam ter curso benigno e boa resposta ao tratamento. O cérebro também sabe se recuperar — e isso não pode ser esquecido.
O que pode acontecer em casos mais graves?
Quando a neuroprogressão acontece, é comum que a pessoa experimente:
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Piora dos sintomas ao longo do tempo
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Dificuldades cognitivas, como lentidão, falhas de memória e atenção
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Redução na resposta aos tratamentos convencionais
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Impacto funcional importante, com prejuízo na autonomia e na qualidade de vida
Não é um destino inevitável — mas é um risco que exige atenção.
Por isso, quanto mais cedo for iniciado o cuidado, maiores as chances de preservar a saúde mental e proteger o funcionamento cerebral.
O que o cuidado pode fazer?
Felizmente, o cérebro é plástico — ele muda, repara, se reorganiza.
Mesmo em quadros graves, há evidências de melhora estrutural e funcional com tratamento adequado, que inclui:
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Medicação ajustada à fase e gravidade do transtorno
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Psicoterapia contínua, com vínculo, elaboração e apoio emocional
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Intervenções no estilo de vida, como sono, nutrição e movimento
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Redes de suporte confiáveis, capazes de sustentar a recuperação
Mas há algo que o cuidado individual não dá conta sozinho: o acesso.
E quem não consegue chegar ao tratamento?
Infelizmente, muitas pessoas que precisariam de cuidado intensivo em saúde mental não conseguem acessar uma escuta qualificada.
Faltam serviços públicos estruturados, faltam políticas de prevenção, faltam redes comunitárias capazes de sustentar o cuidado além da consulta.
A neuroprogressão também é social: há uma progressão do abandono, da precariedade e da exclusão que afeta corpos e cérebros.
Por isso, falar de neuroprogressão não é só um alerta clínico — é também um chamado ético.
Tratar precocemente importa, sim. Mas garantir acesso ao tratamento importa ainda mais.
O que fica?
A neuroprogressão nos ensina que o sofrimento psíquico crônico pode, sim, deixar marcas profundas.
Mas também ensina que o cuidado pode restaurar o que parecia perdido.
Nem tudo volta a ser como era. Mas muita coisa pode voltar a fazer sentido.
E talvez o mais importante: ninguém deveria enfrentar esse processo sozinho.
Sobre o autor:
Dr. Fábio Fonseca
Psiquiatria e Psicoterapia
Com mais de 20 anos de experiência como psiquiatra e psicoterapeuta, o Dr. Fábio é conhecido por sua abordagem humanizada e pelo compromisso em oferecer cuidados de saúde mental baseados nas mais recentes evidências científicas.
Vamos caminhar juntos em direção a uma saúde mental mais equilibrada e satisfatória.
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