“Não quero depender de remédio”: o que isso quer dizer?
Medo da medicalização, desejo de autonomia, ambivalência.
Quando recusar é também pedir cuidado
Nem sempre a recusa a um tratamento é recusa ao cuidado. Às vezes, é só o jeito que alguém encontra de proteger sua história.
É comum ouvir no consultório frases como:
“Tenho medo de ficar dependente.”
“Quero melhorar sozinho.”
“E se eu começar e nunca mais conseguir parar?”
“Já tomei uma vez, e foi horrível.”
Por trás dessas frases, quase sempre há algo mais profundo do que uma simples objeção à medicação. Há medo, ambivalência, experiências anteriores — e, muitas vezes, o desejo legítimo de não ser reduzido a um sintoma.
Entre autonomia e alívio
A psiquiatria pode, sim, oferecer alívio. Em muitos casos, a medicação salva vidas, estabiliza crises e devolve o mínimo necessário para alguém conseguir recomeçar.
Mas nem toda recusa é desinformação. Nem toda hesitação é resistência. Às vezes, o paciente está dizendo:
“Quero melhorar — mas sem perder o sentido do que estou sentindo.”
“Quero ajuda — mas não quero desaparecer dentro de um tratamento.”
O peso simbólico do remédio
Para algumas pessoas, tomar um antidepressivo é uma decisão técnica. Para outras, é um marco: uma espécie de “reconhecimento oficial” de que algo está errado com elas.
Há quem tema ficar “dependente” não do remédio em si — mas do papel de paciente. Ou quem tenha receio de que, ao começar, o cuidado vire uma obrigação indefinida. Ou ainda que o remédio anule partes que, mesmo sofridas, ainda são familiares.
E, às vezes, há histórias anteriores de medicalização forçada, efeitos adversos, negligência médica ou experiências de silenciamento.
Escutar, antes de convencer
Como psiquiatra, aprendi que não se trata de convencer o outro a tomar um remédio. Trata-se de entender o que está em jogo nessa recusa:
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É medo de perder o controle?
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É um pedido de tempo para confiar?
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É uma tentativa de manter a autonomia?
Exemplos concretos ajudam a tornar isso mais real. Uma paciente jovem que recusava antidepressivos por medo de se “desligar” das emoções acabou aceitando iniciar o tratamento após algumas consultas, quando percebeu que seria ouvida mesmo em sua ambivalência. Já outro paciente, com histórico de uso forçado de medicamentos na adolescência, só se engajou no cuidado após encontrarmos juntos uma abordagem não medicamentosa no início — e, com o tempo, ele mesmo propôs tentar algo novo.
Cuidados que não ferem
Oferecer medicação não pode ser imposição. Tem que ser convite. E, quando possível, uma decisão partilhada, informada, flexível.
Cuidar não é apressar.
É acompanhar.
Até que a confiança no tratamento não precise vir à força — mas da escuta.
Ampliar o olhar: contexto também importa
A relação com a medicação não nasce no vácuo. Questões culturais, desigualdades sociais, experiências familiares e até o acesso precário aos serviços influenciam profundamente essa decisão.
A recusa, às vezes, é uma forma de resistência a um sistema que impôs mais do que escutou.
Para refletir:
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Quando alguém diz que não quer depender de remédio, o que está tentando proteger?
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A recusa é uma resistência — ou um pedido de cuidado com mais tempo, mais presença, mais respeito?
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Será que é o corpo que recusa — ou a história que ainda não foi suficientemente escutada?
Recursos possíveis
Se você vive esse dilema, saiba que não está sozinho. Buscar uma segunda opinião, conversar com profissionais de confiança ou participar de grupos de apoio pode ser um bom começo. Há também livros, podcasts e relatos que podem ajudar a elaborar esse caminho com mais autonomia.
Nem todo cuidado precisa começar por um remédio. Mas todo cuidado precisa começar por uma escuta real.
Sobre o autor:
Dr. Fábio Fonseca
Psiquiatria e Psicoterapia
Com mais de 20 anos de experiência como psiquiatra e psicoterapeuta, o Dr. Fábio é conhecido por sua abordagem humanizada e pelo compromisso em oferecer cuidados de saúde mental baseados nas mais recentes evidências científicas.
Vamos caminhar juntos em direção a uma saúde mental mais equilibrada e satisfatória.
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